quinta-feira, dezembro 28, 2006

a mulher que fugia sempre

(estória ficcional dedicada)

Chamava-se Helena.

Apetece dizer que fugia não só do mundo, mas dela própria. Na primária quando a abordava surgia sempre algo que nos separava. Uma chamada dos pais para ela se preparar para sair mais cedo. Ou a professora que nos interrompe quando tinha ganho coragem para lhe dizer "gosto de ti". Uma outra vez um rapaz deu-me um pontapé nas pernas e fugiu - ela ficou a olhar para mim com ar indiferente e virou as costas. Havia algo de mágico naquelas 'despedidas'. Tenho impressão que o mesmo se passava com todas as outras crianças que dela se aproximavam. Ou, pelo menos, assim me convenci.

Um olhar vago, distante e inacessível. Parecia que nos olhava sempre de longe e de relance. Tudo a afastava das pessoas. Como se tivesse todo o acaso do Universo a seu favor. Seria possível? Habituei-me à ideia que sim; a probabilidade era minúscula, mas com tantos milhões de pessoas alguma teria de ter tal "circunstância" e a experiência sensorial mostrava que era a Helena.

Era claro que havia algo nela que a distinguia. Na quarta classe, perdeu-se-lhe o rasto. Dizia-se que algo de muito mau tinha acontecido e os pais haviam mudado de cidade... Indaguei nisto muito tempo. Questionei as velhinhas da paróquia mais próxima (que outro sítio para descobrir segredos enterrados?), mas sem sucesso - era novo demais.

Com efeito, ninguém mais a viu. Até um dia, vinte anos mais tarde...

Estava numa livraria no centro do Porto quando a avistei. Não queria acreditar: era ela! Só podia ser! As feições eram parecidas. O cabelo parecia diferente - estragado. Mas era ela. O olhar inconfundível. Estava de um lado para o outro, ora a olhar para o relógio, ora atenta à estante dos policiais. Novamente tive aquela impressão: ela estava a fugir de algo, mas de quê? Teria combinado encontrar-se com alguém e perdera a coragem? Seria uma paranóia de nascença da qual não se libertara mais? A curiosidade apoderou-se de mim.

Pegou num livro. Dirigiu-se ao balcão de pagamento e eu, discretamente, seguia todos os seus movimentos. Seria uma daquelas viciadas em policiais? A curiosidade rapidamente se dissipou - mal o livreiro desviou o seu olhar para ela, atirou o livro para balcão e fugiu em passo acelerado em direcção à rua.

Atrapalhado corri também em direcção à entrada. Onde iria ela? Estava perto da praça incomodada com os pombos - disse-lhes mesmo qualquer coisa que não consegui perceber. Dirigiu-se à estação de comboios. Colocou uma moeda na máquina e serviu-se de uma qualquer bebida quente.

De seguida deslocou-se à bilheteira. E que podia fazer eu, agora? Reconheci que a oportunidade era única e não se voltaria a repetir. Perdê-la-ia agora para sempre?

"Boa tarde. Quero um bilhete igual ao da senhora que acabou de sair daqui"

O funcionário achou piada ao meu atrevimento e, como um cúmplice num qualquer esquema kafkaniano, deu-me um bilhete para Braga sem dizer uma única palavra.

(continua)

2 Comments:

At 1:56 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Aqui estou eu outra vez.
Helena. Não tua, é claro!

 
At 3:19 da manhã, Anonymous Anónimo said...

huumm, a mulher que fugia sempre, ou o homem que sempre procurou?

:D espero para ver o fim..:P

abraço, Jorge

 

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